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O que não nos contam sobre o Egito Antigo: a medicina primeira veio da África e dos negros

Atualizado: 31 de mar.

O que não nos contam sobre o Egito Antigo: a medicina primeira veio da África e dos negros

O Papiro de Edwin Smith revela como os antigos egípcios dominavam procedimentos que lembram a forma como atualmente lidamos com curas médicas.

Autor: Wilson Oliveira Badaró

(Mestrando em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas)

Email: W_O_B@hotmail.com

Supervisor do tirocínio: Leandro Antonio de Almeida

Publicado originalmente no LEHRB em 30/07/2017


Você sabe de onde veio a medicina que atualmente nossas sociedades praticam? Respondeu Grécia? Roma? Sinto afirmar que nenhuma das duas respostas anteriores está correta. Ainda não sabe? Eu lhes convido a saber de onde surge a medicina.


Por volta de 7 mil anos atrás, no vale do Rio Nilo, no continente africano, nascia uma das sociedades mais prósperas da História Antiga: o Egito ou, como denominado por eles mesmos, Kemet.


O Rio Nilo conta com 6.671 Km de extensão. Como um rio perene ele depositava materiais orgânicos em suas margens, fertilizando o solo e propiciando o plantio de trigo, centeio, cevada, linho, algodão, vinhas, frutas e hortaliças dentro de uma área de deserto.


O desenvolvimento da sociedade só fora possível devido ao tipo de relação que estabeleceram com o Rio Nilo e seus férteis vales. O rio favorecia com o húmus deixado, porém desfavorecia com as inundações, mas isto os ensinava a lidar com suas variações, dominá-lo e adequá-lo para a agricultura. Isto possibilitou a sedentarização destes povos que inteligentemente se manejaram com este rio e projetaram ambos os nomes para a história.


Em diversas situações os períodos de cheias causavam ruinas à lavoura e a morte de pessoas e animais. A engenhosidade dos egípcios começa com a construção de barragens para impedir a inundação com a água e com a formação de reservatórios que levavam água para áreas mais distantes das margens em momentos de secas, o que aumentava as áreas de cultivo. Se o povo que ali estivesse não dispusesse desta engenhosidade, o Nilo não poderia proporcionar o desenvolvimento do Egito.


Sustentar a vida numa região desértica do Saara requeria muita habilidade destes povos. Notaram e executaram atitudes criativas para usar melhor a percepção que tiveram das enchentes e vazantes das margens do Rio Nilo, que se repetiam de forma regular. Observando os ciclos deste rio e guiados por eles os egípcios estabeleceram rotinas sociais e atividades produtivas como a agrícola, a irrigação, o plantio e a colheita de suas lavouras, aproveitando as diferentes fases do rio e confrontando as problemáticas enchentes. Esta lógica que acompanhava os ciclos do Nilo lhes conferiu não somente uma organização social interna, mas também rendeu um calendário anual sistemático, que se consolidou com o início das enchentes coincidir com a aparição da estrela Sirius, levando-os a estudos mais detalhados dos astros celestes.


Este tipo de atitude observadora e inventiva se ramificou por diversos outros segmentos do trabalho humano, no sentido de viabilizar a vida naquela região. Já estabelecidos, os egípcios passaram por diversas formas de organização política e social, de aldeias espraiadas ao longo das margens do Nilo a uma sociedade centralizada com um chefe político comum: o Faraó.


O primeiro de todos os faraós ficou conhecido como Menés (o unificador) que reuniu as sociedades do Alto Egito, localizado no sul, e o do Baixo Egito, ao norte, por volta de 5 mil anos a. C.. Este tipo de organização política do Egito Antigo, com um faraó centralizador, foi chamado de nomos. Supõe-se que Menés tenha fundado a primeira de todas as 33 dinastias que governaram o Egito ao longo de três mil anos. Os poderes dinásticos dos faraós eram hereditários, ou seja, passava de pais para filhos. Como a autoridade máxima jurídica, religiosa, política, administrativa e militar, o faraó era um líder e um deus ao mesmo tempo. E como deus e líder, todos os eventos estavam relacionados a ele e, consequentemente, sob seu comando.


A organização social do Egito Antigo contava ainda com outros estratos sociais que compunham a sua sociedade como: sacerdotes, altos funcionários da administração do governo, líderes militares, escribas, comerciantes, artesãos, camponeses e escravos. Esta divisão social implicava em tarefas bem definidas dentro desta sociedade. Os sacerdotes deveriam administrar templos, conduzir cerimônias e eventos religiosos de todo tipo. Os altos funcionários administravam as produções e contas do Egito, e sua centralidade no sistema político era inegável. Os impostos, despesas e receitas eram de sua responsabilidade. Os escribas deveriam registrar por escrito tudo que os rodeava em termos administrativos nas esferas econômicas, jurídicas e políticas. Os comerciantes dinamizavam o acesso a todo tipo de bem de consumo disponibilizando mercadorias não apenas egípcias, mas de sociedades vizinhas como a Núbia, Cushe, Napata e Meroe, por exemplo. Os artesãos eram responsáveis pela transformação da matéria prima em objetos e itens usáveis pela sociedade em geral. Os camponeses constituíam boa parte da mão de obra disponível no reino, assim como os escravos que realizavam todas as atividades que os primeiros não realizavam.


Do mesmo modo que na matemática, na irrigação, na astronomia e na arquitetura, a sociedade egípcia desenvolveu conhecimentos e práticas na medicina. Conheciam como nenhuma outra sociedade a anatomia humana como mostra a prática avançada de mumificação, ligada a preservação corporal para a vida após a morte. Os egípcios foram um dos primeiros povos da antiguidade a se preocuparem com os saberes de cura, que ficavam a cargo de especialistas conhecidos como “Sacerdotes de Sekhmet”. Foram eles que padronizaram comportamentos e atitudes a serem tomadas para combater as enfermidades encontradas. O nome Sacerdote de Sekhmet faz alusão à deusa da guerra, da medicina e da vingança, uma vez que esta deusa era invocada em campos de batalha antes, durante e principalmente após as guerras, quando os guerreiros necessitariam de seus tratamentos e cuidados.


Já ouvimos falar dos egípcios como os primeiros “médicos” da história? Já ouvimos falar das contribuições pioneiras dos egípcios para o desenvolvimento da atual medicina? E sobre a personagem histórica de Imhotep, cujos rumores indicam que escreveu o papiro de Edwin Smith no período em que prevalecia o hierático? Certamente a resposta será negativa. Mesmo nos livros didáticos, sempre que se trata da contribuição egípcia neste campo a exposição dos conteúdos restringe-se à mumificação e o embalsamamento, não é mesmo? E quando falamos de fundação da medicina, sempre nos lembraremos do afamado “juramento de Hipócrates”! Assim a escola nos ensinou e ainda hoje nos ensina. No entanto, é preciso considerar o fato de que, dois mil anos antes pelo menos, os egípcios já praticavam e desenvolviam métodos e formas diversas e complexas para sanar problemas de saúde que apareciam em sua sociedade. Dizemos isto pois, Hipócrates viveu entre os séculos V e IV a. C., e os papiros datam de XXVII a.C., ou seja, muito anteriores e, por assim ser, mais antigos que os conhecimentos gregos.


Para imortalizar estes conhecimentos, os egípcios valeram-se de outro conhecimento muito antigo entre eles para projetar estes saberes: a escrita. Um exemplo precioso das informações sobre práticas de cura deixadas pelos egípcios pode ser encontrado na imagem abaixo.

Papiro de Edwin Smith


Figura 1: Apresentação das colunas do Recto 6 e 7. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/Images/1200_pixels/papyrus-e.jpg

Acredita-se que a versão original deste papiro foi redigida em escrita hieroglífica, uma escrita sagrada. Cerca de mil anos depois, ele foi transliterado, ou seja, foi feita uma tradução para uma forma linguística diferente chamada hierático, que é uma simplificação da escrita hieroglífica para uso geral administrativo. O hierático é uma forma intermediária entre a escrita sagrada e outra conhecida como demótico, mais popularizada para toda a sociedade e utilizada inclusive por gregos e romanos. É o sistema hierático que está representado na imagem acima.


O Papiro cirúrgico de Edwin Smith apresentou para o mundo suas características em relação às práticas de cura no Egito antigo e, dentre elas:

  1. O papiro é o mais antigo tratado de medicina cirúrgica do mundo;

  2. Contém uma sistematização das abordagens médicas que faz dele o mais próximo dos padrões científicos atuais;

  3. Aponta majoritariamente as necessidades de tratamentos médicos por causas naturais e não por causas demoníacas ou espirituais (o que é muito comum em outros documentos do gênero);

  4. É o primeiro a definir um termo para se referir ao cérebro humano


Ele foi o escrito em algum momento na Idade das pirâmides (por volta de 3000 a 2500 a. C.), e o que mais chama a atenção dos estudiosos deste documento histórico é a forma de organização e apresentação dos casos nele impressos. Esta organização se apresenta da seguinte forma:

  1. Título: neste item o caso é apresentado a partir do nome dado pelo Sacerdote de Sekhmet (nome dado aos responsáveis por curar pessoas na antiguidade do Egito) que considera o tipo do trauma e suas implicações;

  2. Exame e prognóstico: aqui, a natureza do trauma é aprofundado. O Sacerdote de Sekhmet expõe o que encontrou em suas observações, as condições do trauma, sua aparência e características principais;

  3. Tratamento: neste item o Sacerdote de Sekhmet discorre e sugere soluções para o trauma observado considerando sua condição e toda a materialidade medicamentosa disponível na literatura médica egípcia;

  4. Explicações: neste item, informações adicionais e detalhes sobre itens e termos usados são adicionados, acredita-se que tais elementos foram adicionados posteriormente, entre os anos de 1700 e 1500 a. C., para facilitar a compreensão dos praticantes posteriores.


Esquema de compreensão e precisão dos casos dentro da fonte em escrita hierática

Este tipo de organização das análises médicas feitas pelos egípcios há mais de 4 mil anos atrás é, em sua totalidade, feito atualmente. O que queremos dizer é que as bases da sistematização dos passos de análises médicas já estavam presentes na antiguidade egípcia, como se pode confirmar lendo o Papiro de Edwin Smith na integra.


Ou seja, os mesmos passos feitos pelos egípcios de examinar a doença, projetar um prognóstico, indicar um tratamento e adicionar explicações aos casos são fases pelas quais os médicos atuais ainda estão forçosamente atrelados. Se assim o é, e como apontado por diversos pesquisadores, os egípcios dispõem do mais antigo tratado cirúrgico e médico do mundo, logo, podemos convir que sua medicina é a mais antiga entre todas as sociedades humanas.


Apesar de tudo isso, essa primazia dos egípcios não se traduziu em reconhecimento acadêmico (ou popular) difundido sobre os seus feitos, tampouco em referências objetivas nos livros didáticos de suas contribuições para campos além da mumificação. As razões que levam a este comportamento em relação aos saberes egípcios e seus conhecimentos historicamente verificáveis sobre a “medicina” podem ser relacionadas às mesmas razões que levam práticas culturais de origem africanas a serem, ainda hoje, discriminadas e combatidas em diversos lugares do Brasil e do mundo: o desinteresse em demonstrar/sugerir o protagonismo negro em diversos segmentos e, sobretudo os que agora são tidos como elitizados como a medicina.


Conheça um dos casos do Papiro:

Caso 10. Uma ferida na sobrancelha (5,5-9)

Título

Práticas para uma ferida na ponta de sua sobrancelha

Exame e Prognóstico

Se você tratar um homem por uma ferida na ponta de sua sobrancelha, que penetrou no osso, você tem que sondar sua ferida e feche sua abertura para ele com linha. Então você diz sobre ele: “Uma ferida na sobrancelha: Uma doença que eu cuidarei”

Tratamento

Depois de costurar ele, (você tem que enfaixar ele) com carne fresca no primeiro dia. Se você encontrar esta ferida com a sua costura movida por deslizar, você tem que prendê-lo para ele com dois pedaços de pano. Você deve tratá-lo com azeite e mel todos os dias até que ele fique bem.

Explicações

Quanto a “dois pedaços de pano,” são duas tiras de pano. Eles são colocados na boca de uma ferida aberta, a fim de fazer aderir uma à outra.


Exemplo de recorte do caso 10 da fonte original: Coluna 5; Linhas 5-9


Textos recomendados

MOKHTAR, G. História Geral da África. Volume II. 2ª ed. rev. Brasília: Unesco, 2010.

DOBERSTEIN, Arnoldo W. O Egito Antigo [Recurso Eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

ARAÚJO, Emanuel O. Escritos para a eternidade: literatura no Egito faraônico. Brasília (DF): Ed. UnB, 2000.

NOGUEIRA, Renato. A ética da Serenidade: o caminho da barca e a medida da balança na filosofia de Amen-em-ope. In: Ensaios Filosóficos, v. VIII, dez 2013, pp. 139-155. Disponível em: http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo8/noguera_renato.pdf, Acesso em 25.jul.2017.

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