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Festejando a liberdade no Bembé do Mercado

Atualizado: 31 de mar.

Festejando a liberdade no Bembé do Mercado


Realizado pela primeira vez em Santo Amaro para comemoração do fim da escravidão, candomblé de rua até hoje é uma das mais tradicionais festas do Recôncavo

Por Isadora Maria Lima da Silva,

Bolsista PINAF do CAHL / UFRB

Orientador: Leandro Antonio de Almeida

Publicado originalmente no LEHRB em 5/9/2014


Acontece todos os anos, no dia 13 de maio, em comemoração a Abolição dos escravos, o Bembé do Mercado de Santo Amaro da Purificação. No centro da cidade do Recôncavo da Bahia, o largo principal do mercado é cenário do maior Candomblé de rua do Brasil. Durante três noites, todos os terreiros da cidade reunidos batem o Candomblé (o Bembé) com o objetivo de reverenciar seus ancestrais e Orixás. Para os participantes do Candomblé “bater o Bembé” significa reafirmar a liberdade do povo negro, “abrir os caminhos” para boas energias e bons acontecimentos durante o ano todo.


Na canção “13 de Maio”, Caetano Veloso nos conta: “Dia 13 de maio, em Santo Amaro, na praça do mercado, os pretos celebravam, talvez hoje ainda o façam, o fim da escravidão, o fim da escravidão, da escravidão…”. Caetano nesta canção fala sobre o Bembé como reverência a Isabel: “tanta pindoba, lembro do aluar, lembro da maniçoba, foguete no ar..pra saudar Isabé, Isabé”. Entre os populares corre a ideia de que “bembé” seria a forma como os negros conseguiam pronunciar o nome Isabel associado a ideia de bem, bem-querer… isabé, bem bé. Para alguns pesquisadores, como Ubiratan Castro e Zilda Paim, a palavra bembé seria uma corruptela do termo candomblé, dai a expressão “bater o bembé”, “bater o candomblé”.


Lutas pela Liberdade


Seja qual for a origem da palavra, as primeiras celebrações da festa surgem no conturbado contexto pós-abolição do Recôncavo. A historiadora, Katia Mattoso diz :Quem pensa na Bahia dos séculos XVII e XIX pensa imediatamente na Bahia Capital do Açúcar, na opulenta cidade dos senhores de Engenho e de seus escravos. É impossível compreender a cidade da Bahia sem compreender seu Recôncavo.”


Principal centro produtor e exportador de cana de açúcar, e também de grande variedade de cultivo agrícolas – fumo, mandioca, feijão – o Recôncavo Baiano era responsável pelo abastecimento dos gêneros de primeira necessidade da capital e região. Segundo o Historiador Walter Fraga, no século XIX as freguesias rurais das cidades de São Francisco do Conde, Santo Amaro e Cachoeira concentravam 90% dos engenhos do Império.


Ainda segundo Fraga, o Recôncavo Baiano experimentou crise financeira desde a década de 1870, provocada pela queda dos preços e diminuição da exportação do açúcar; aliado a extinção do tráfico negreiro em 1850, e pelas leis que definiam algum direito aos escravos, entre décadas de 1870 e 1880 – como a lei do ventre livre e a do sexagenário. Mesmo assim, nos últimos anos do século, representava do ponto de vista econômico a mais importante região da província, por consequência era a região que reunia o maior número de escravos. Daí porque os senhores de engenho do Recôncavo se opuseram a qualquer projeto ou tentativa de acabar com a escravidão.


Logo no dia 14 de maio de 1888, dia seguinte à promulgação da Lei que garantiria a liberdade dos negros escravizados, os “ex-senhores de escravos” santoamarenses, inconformados com a abolição, se articularam politicamente na tentativa de revogar a nova lei. Toda ordem de repressão aos negros tomou conta do lugar, os “ex-senhores” mobilizaram inclusive a força policial da cidade.


O esforço se justificava pelo desejo de conter a população negra em festa, restabelecer a ordem, proteger a propriedade privada e, principalmente, a relação senhor/escravo. Tanto é que os senhores de engenho renitentes com a abolição acreditavam e falavam que a lei seria revogada. Chamavam os homens de cor agora livres pejorativamente de os “treze de maio”. Reza a memória popular que diziam em versos: “Nasceu periquito, morreu papagaio, não quero conversa com Treze de maio”. Os barões de Santo Amaro com apoio policial tentaram inutilmente proibir o ajuntamento dos negros ainda em festa pela abolição.


Apesar das manobras empreendidas pelas elites locais, os negros resistiram à repressão e as tentativas de manutenção da escravidão. Um ano após a assinatura da Lei Áurea, o pai de terreiro João de Obá organizou em Santo Amaro uma celebração do primeiro aniversário da liberdade. Trazido da África para trabalhar na lavoura de açúcar, Obá era muito respeitado como feiticeiro: sabia a arte do Ifá (jogo de búzios), profetizava e aconselhava sobre os “trabalhos” a serem feitos pelos filhos de santo para livra-los de problemas.

Em 13 de maio de 1889, João de Obá juntou seus filhos de santo na ponte do Xaréu e tocou o primeiro Bembé em um barracão de pindoba (nome popular de uma espécie de palmeira), que foi enfeitado com bandeirolas e armado no centro do largo do mercado da cidade. Ao som de atabaques e ritos do candomblé, os negros festejaram e agradeceram a liberdade a todos os Orixás.


O Bembé


O Bembé foi realizado durante três noites, e finalizado com a entrega do balaio de presentes no Rio Subaé para a Mãe D’água. Seguiam para São Bento das Lajes com canoas e saveiros enfeitados. Ao som dos atabaques, iam até o encontro entre o rio e o mar para a entrega das oferendas. Em sua dissertação de mestrado sobre o Bembé, a pesquisadora Ana Rita Machado destaca que a entrega do balaio de presentes era um antigo costume dos pescadores que ofertavam flores e perfumes para a Mãe D’água. Até hoje esse costume permanece nas festas em homenagem a Iemanjá que ocorrem no início de fevereiro em Salvador e Cachoeira.


Após da morte de João de Obá, os negros pescadores, adeptos do candomblé, assumiram a realização do Bembé. Algumas mudanças nos festejos foram ocorrendo ao longo do tempo. Em 1930, os negros decidiram não mais bater o Bembé na ponte do Xaréu e passaram para o prédio do Mercado recentemente construído, o que ampliou a participação da comunidade nos festejos. Pouco a pouco foram se inserindo a festa grupos que representam a cultura afro-brasileira, como capoeiras, sambadeiras e maculelês.


Todos os anos, através do babalorixá, ogãs e equedes, o terreiro responsável pela organização do Bembé do mercado cumpre algumas cerimônias ritualísticas antes e durante a festa. Por força dos fundamentos do candomblé, os iniciados reverenciam os ancestrais fundadores do Bembé, saúdam os orixás com oferendas, seguido de diversos ritos destinados a Iemanjá. Para os não iniciados a participação no Bembé acontece apenas durante o Xirê, a sequencia na qual os Orixás são reverenciados com cânticos e danças sagradas no barracão do mercado nos três dias de festa.


Três dias antes da festa são realizados ritos privados para Egum e cerimônias para Exu, o padê. Antes do início das cerimônias públicas ou privadas, se oferecem a Exu alimentos e bebidas votivas, animais sacrificados, com o objetivo de que permita os trabalhos, para que não haja confusões e que interceda pelos homens aos orixás que serão invocados no culto. Também conhecido como despacho de Exu, acontecem nas encruzilhadas de acesso a cidade.


Após o padê de Exu prepara-se o espaço da festa. Os iniciados levantam o mastro sagrado, o ixé, no poste central do barracão do mercado, com objetivo de sacralizar o território, preparar o chão e os axés – termo que significa “energia”, “poder”, “força”. No caso do ritual do Bembé refere-se aos assentamentos de orixás que ficam nos pejisaltares de candomblé – mas também significa a força mágica que sustenta os terreiros de candomblé.


A véspera do dia 13 de maio é o dia da preparação para o presente de Iemanjá. Os integrantes do terreiro aprontam a comida e as oferendas para Ogum, Oxum, Oxossi, Nana, Oxalá, Xangô, Agôdo e Oxaguiã, orixás que têm alguma relação com Iemanjá. Ocorrem ritos de fundamento para que o barco que carrega as oferendas seja sacralizado.


No ultimo dia da festa, no barracão, a mãe de santo mais antiga da cidade anuncia a aceitação das oferendas pelos Orixás, através de um rito com Obi, um fruto de palmeira africana muito utilizado em rituais de candomblé. Então os ogãs reverenciam o presente com as oferendas nas mãos e estouram fogos de artifício. Por fim, as oferendas seguem em um caminhão pelas ruas da cidade até a praia de Itapema, ao som de cânticos, atabaques e agogôs.


Significado para Santo Amaro


Se a realização do Bembé significa agradecimento pelo fim da escravidão e “abertura dos caminhos”, uma espécie de rito de benção para bons acontecimentos, corre entre a população que a sua não realização significa mau presságio: “é de responsabilidade não deixar de bater o Bembé”, a custa de tragédias na cidade. Em quatro ocasiões em que o Bembé não foi realizado ocorreram catástrofes em Santo Amaro.


Dentre as histórias que colaboram para a certeza da população quanto a relação entre ato de proibição do Bembé e eventos catastróficos, a de 1958 é a mais marcante, pela proporção e proximidade temporal. O prefeito da época, Manoel Marques, alegando que não fazia sentido três dias de barulho, suspendeu a realização do Bembé. Em junho, próximo aos festejos de São João, Santo Amaro experimentou um sentimento de luto coletivo profundo quando uma explosão das barracas de dinamite no largo do mercado provocou a morte e mutilação de muitas pessoas. Automaticamente a tragédia foi atribuída à não realização do Bembé.


Desde 1959, a Prefeitura Municipal de Santo Amaro patrocina a festa que, desde 2012 se tonou patrimônio imaterial do Estado da Bahia. Porém, a coordenação do ritual ainda pertence aos terreiros. Vislumbrando exploração turística, a prefeitura passou a inserir grupos folclóricos na festa. Além dessa, outra mudança ocorrida no Bembé do Mercado foi a mudança do lugar da entrega do balaio de presentes, que passou de São Bento das Lajes para a praia de Itapema.

Apesar das transformações sofridas e da apropriação política de uma manifestação popular, a comemoração não perdeu o significado de afirmação da liberdade. O historiador Ubiratan Castro destaca o Bembé do Mercado como ícone da força da cultura afro-brasileira para afirmação da cidadania negra, pois representa a “histórica luta popular contra o cativeiro” no Brasil.


SAIBA MAIS:

ALBUQUERQUE, Wlamira Ribeiro de Santos; FRAGA FILHO, Walter. Uma História do negro no Brasil. Salvador. CEAO e Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

ARAUJO, Ubiratan Castro. O candomblé da liberdade. (2003) Disponivel em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2010/11/O-CANDOMBL%C3%89-DA-LIBERDADE.pdf Acesso em 20 jul. 2014.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhada da Liberdade: história de escravos e libertos na Bahia (1870 – 1910). Campinas: UNICAMP, 2006.

MACHADO, Ana Rita Araujo. Bembé do largo do mercado: memória sobre o 13 de Maio. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Dissertação de Mestrado, 2009.

RISÉRIO, Antonio. Uma história da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004.

VELLOSO, Jorge. Candomblé de rua: o Bembé de Santo Amaro. Salvador: Casa de Palavras, 2011.



Legenda: “Os troncos, bacalhaus e outros instrumentos de tortura alimentam as fogueiras em redor das quais os novos cidadãos entregam-se ao mais delirante batuque.”

Fonte: Escravos comemoram a libertação. Imagem de Angelo Agostini, publicada na Revista Ilustrada em 1888. (Edição 00499 – página 4). Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=332747b&PagFis=3664&Pesq=1888

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