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Foto do escritorRoda de Histórias

A Independência baiana

Atualizado: 31 de mar.

A Independência baiana


Ocorrido entre 1822 e 1823, conflito entre portugueses e brasileiros no Recôncavo Baiano revela o lado violento do processo de independência do Brasil.


Por Leandro Antonio de Almeida


Publicado originalmente em Carta Fundamental, v. 69, p. 23 - 27, 01 jul. 2015.




Na Bahia, o grito “independência ou morte” ganhou sentido literal, contrariando a generalizada imagem de uma separação pacífica de Portugal, como a que ocorreu pela ação das elites no Centro-Sul do Brasil. De fevereiro de 1822 a julho de 1823, ocorreu um conflito no Recôncavo Baiano que mobilizou a população livre, mulheres e escravos, de maneira tão marcante que a vitória brasileira é comemorada até hoje em uma das maiores festas cívicas do País.


Uma série de acontecimentos, como a vinda da Família Real (1808), a elevação do Brasil a Reino Unido (1815) e a Revolução Liberal do Porto (1820), criou expectativas de autonomia política e econômica nas elites e classes médias brasileiras, com relação a Portugal. Tais expectativas, porém, acabaram frustradas quando Lisboa tomou medidas para restabelecer o controle colonial: intimaram o retorno do príncipe regente dom Pedro e nomearam chefes militares nas províncias, que deveriam obedecer diretamente a Portugal. Na Bahia, a nomeação do português Inácio Luís Madeira de Melo, em detrimento do brasileiro Freitas Guimarães, foi o estopim do conflito. Em fevereiro de 1822, deflagrou-se um confronto entre soldados reinóis e nativos que se alastrou pela população civil e terminou com a ocupação militar de Salvador, apoiada pela abastada elite comercial lusitana residente.


Por conta do conflito, militares e civis brasileiros deixaram a capital Salvador rumo às matas de entorno da cidade ou ao Recôncavo Baiano. Na época, essa era uma rica região em torno da Baía de Todos os Santos que, através do Rio Paraguaçu, intermediava o comércio da capital com o Sertão e produzia mantimentos para subsistência, além de fumo e açúcar para exportação. No Recôncavo, organizou-se a reação política brasileira. Em junho de 1822, Dom Pedro foi aclamado pelas câmaras municipais, o que significava apoiar o príncipe regente no Rio de Janeiro e contrariar Portugal. No dia 25 de junho, brasileiros da vila de Cachoeira que festejavam a aclamação foram bombardeados por uma barca enviada pela capital para bloquear o Paraguaçu, capturada dias depois após combates. As câmaras das outras vilas da Bahia formaram um conselho interino que, com sede em Cachoeira, governou a província e mobilizou contingente para combate, enquanto as forças de Madeira de Melo iniciavam movimentações para retaliação. Iniciou-se então uma guerra que culminou no cerco brasileiro a Salvador, com batalhas em áreas próximas da cidade, no mar ou na ilha de Itaparica.


As forças portuguesas chegaram a ter 10 mil efetivos profissionais. Já as tropas baianas foram inicialmente organizadas em milícias. Eram lideradas pelos proprietários brancos do Recôncavo e integradas por militares, homens livres de todas as raças e profissões, escravos enviados pelos senhores, além de barcos de guerra improvisados, liderados por João das Botas, um português fiel a dom Pedro. A esse contingente, somou-se o reforço vindo do sertão, de lavradores, vaqueiros e até índios. Mais tarde, chegaram brasileiros recrutados no Rio de Janeiro e no Nordeste, liderados pelo general francês Labatut e o almirante britânico Lord Cochrane.


Como relatam em suas cartas, o desafio desses mercenários contratados pela Corte do Rio foi organizar um exército e uma marinha para o país já independente com pessoas sem experiência alguma de batalha. Dão uma ideia do caráter popular dessa ampla mobilização de 12 mil combatentes (fora os acompanhantes), a qual propiciou uma inédita convivência entre pessoas de sexo, classes e províncias diferentes.


Apesar de unidos pelo desafeto aos portugueses, que endividavam os endinheirados e especulavam com os gêneros de subsistência necessários aos livres em geral, os brasileiros nem sempre tinham as mesmas aspirações. Os proprietários abastados do Recôncavo tomaram as rédeas do processo porque temiam “que algum espírito mal intencionado mova o povo em excessos anárquicos, ou desviem-se do sistema monárquico constitucional”. Tratava-se de uma referência às ideias de separação e república federativa que, tendo inspirado os pernambucanos em 1817, já alcançavam os baianos. Até mesmo escravos reivindicaram direitos a seu favor, como relata escandalizada uma senhora de engenho e esposa de deputado da Constituinte em Lisboa: “A crioulada da Cachoeira fez requerimentos para serem livres. Estão tolos, mas a chicote tratam-se! Aviso-te mais: que, em nome dos cativos daqui, há aí quem meta às Cortes requerimentos”. Já na fase da guerra fugiram e se alistaram nos batalhões com o fim de conseguirem – e alguns com sucesso – a liberdade.


As mulheres também saíram do papel de vivandeiras, limitadas a acompanhar a tropa para cozinhar e cuidar dos feridos. A negra Maria Felipa, por exemplo, organizou as conterrâneas numa emboscada contra portugueses que tentaram invadir a ilha de Itaparica. Já a filha de lavradores Maria Quitéria fugiu de casa, cortou o cabelo e, disfarçada de homem, alistou-se nos batalhões patrióticos. Tendo aprendido a atirar na fazenda do pai ao caçar animais, Maria Quitéria destacou-se ao ponto de ser promovida pelos superiores. Quando os conflitos acabaram, foi para o Rio “para ser apresentada ao Imperador, que lhe deu o posto de alferes e a ordem do Cruzeiro, cuja condecoração ele próprio impôs em sua túnica”, como conta a escritora britânica Maria Graham, que a conheceu na ocasião. Felipa e Quitéria são exemplos de como o protagonismo popular tornou porosos os papeis e fronteiras sociais naquele ano de guerra. Com seu fim, a despeito de promoções e alforrias, a nova monarquia recolocou as pessoas nos seus devidos lugares, segundo as antigas hierarquias, com os privilegiados da terra no poder e devolvendo escravos fugidos a seus senhores.


O grosso dos combatentes brasileiros estava exposto ao inimigo, à comida escassa, ao atraso nos soldos e a doenças. Após a fuga de navio de Madeira de Melo e dos soldados portugueses em 2 de julho de 1823, as tropas que acompanhavam os oficiais do Exército Pacificador na retomada de Salvador “apresentavam o quadro das mais extremosas privações; sem fardas, sem calçado; mas ornados da sua nudez e ricos de seus sofrimentos”. Os vitoriosos foram recebidos pelos soteropolitanos, desesperados pela falta de provisões. A “riqueza dos sofrimentos” era generalizada, agravada pela economia baiana arruinada pelo conflito. Restou o apelo às formas da tradição: ainda no dia da vitória soldados meteram folhas verde-amarelas e um velho índio sobre uma carroça e saíram em festa pela cidade, comemorando o fim da “tirania portuguesa”.

Desde então, o cortejo de entrada da tropa brasileira na cidade se repete com ampla adesão popular, fazendo referências aos tipos e personagens da guerra de independência na Bahia. Para tomar um exemplo: simbolizando a força do brasileiro, em 1826 o Caboclo passou a ser representado pela estátua de um índio guerreiro, à frente de um grupo de brasileiros que saíam às ruas para agredir portugueses aos gritos de “mata maroto”. Na década de 1830, a tentativa de arrefecer o ânimo agônico levou à incorporação de uma esposa, a Cabocla, que expressa a conciliação entre lusitanos e brasileiros por ser inspirada em Catarina Paraguaçu.


Nas primeiras décadas da República, o caboclo e a cabocla sobreviveram à investida de grupos dirigentes que, inspirados nos ideais evolucionistas, queriam sanear a festa de símbolos tidos como primitivos e práticas devocionais consideradas supersticiosas. É o caso dos bilhetes com pedidos de graça que até hoje podem ser encontrados na carroça da imagem e, junto da contrição, expressam a dimensão religiosa incorporada ao cortejo cívico.


Nesses quase dois séculos, o cortejo de 2 de julho expressou conflituosas identidades, representações e relações sociais, aí inclusas a autopromoção dos grupos dirigentes do Estado e a insatisfações de diversos grupos subalternos. Em 2012, enquanto os candidatos à prefeitura de Salvador participaram do cortejo acompanhados do séquito de cabos eleitorais, os professores estaduais há meses em greve se manifestavam contra a retirada de direitos e pela melhoria das condições na educação. No ano seguinte, os simpatizantes das manifestações que cobriram o País desde junho se expressaram contra os gastos na Copa do Mundo, e levou as autoridades a isolar o início do cortejo com contingente policial nunca visto na cerimônia de abertura. Não sem razão: de maneira festiva, o 2 de julho torna presente a luta e os anseios por independências que ainda precisam ser alcançadas.



Antônio Parreiras. O Primeiro Passo para a Independência da Bahia. 1931. Palácio do Rio Branco, Salvador, Bahia.



Saiba mais:

2 de julho: a Bahia na independência nacional, de Ubiratan de Castro Araújo (org.). Fundação Pedro Calmon, 2011. Algazarra nas ruas: comemorações da Independência na Bahia, de W. R. de Albuquerque, Ed. da Unicamp, 1999 O jogo duro do Dois de Julho: o “partido negro” na independência da Bahia, de João José Reis e Eduardo Silva. In: Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Companhia das Letras, 1989 Independência do Brasil na Bahia, de Luís Henrique Dias Tavares, Edufba, 2005. Filmes ou Vídeos Cortejo 2 de Julho – Caminhos da Independência. http://www.educadora.ba.gov.br/component/mediaz/media/view/2121 O Corneteiro Lopes, de Lazaro Faria. Disponível em: https://www.camara.leg.br/tv/175969-curta-metragem-o-corneteiro-lopes-diretor-lazaro-faria/


Atividade didática de História inspirada neste texto Anos do Ciclo: 7° e 8° anos Área: História Possibilidade Interdisciplinar: Geografia, Artes Tempo de Duração: 5 aulas Objetivos de aprendizagem: Conhecer os conflitos envolvendo o processo de independência política no Brasil; identificar e localizar no tempo e no espaço as sociedades estudadas; coletar informações de diferentes fontes históricas expressas em textos, imagens e objetos.

1) Uma parceria pode ser estabelecida com o professor de Geografia para tratar do Recôncavo da Bahia. Aprofunde as informações do texto sob o ponto de vista físico, como a disposição da costa, a relação do Rio Paraguaçu com o Sertão e com a Baía de Todos os Santos, a composição do terreno e dos solos propícios ao plantio de açúcar e fumo. Uma relação passado/presente pode ser estabelecida a partir da investigação sobre o papel econômico da região que ainda produz tais produtos.

2) Peça para os estudantes analisarem relatos e documentos do conflito. Por meio do site www.brasiliana.com.br/ é possível acessar as Cartas Baianas 1821-1824 (trocadas pelo deputado baiano Luís Paulino) e os diários de Maria Graham. Jornais podem ser acessados no site memoria.bn.br, e volumes das memórias de Inácio Accioli estão disponíveis no Google Books. Pode-se escolher um episódio do conflito e analisá-lo sob diversos pontos de vista. Se quiser, o trabalho pode partir da questão racial e de gênero, com a análise aprofundada da trajetória das personagens femininas mencionadas no texto.

3) Pode-se comparar os diversos sentidos do cortejo do 2 de julho ao longo do século XIX e início do XX, com aqueles que possuem atualmente. Peça para os alunos acessarem os jornais antigos da Bahia disponíveis em memoria.bn.br. Se desejar realizar um projeto integrado com artes, a turma pode confeccionar os elementos e realizar um cortejo com os símbolos da festa na escola ou no bairro. Outras manifestações do Recôncavo ligadas à independência também podem ser abordadas, como os festejos de 25 de junho em Cachoeira ou as Caretas do Mingau de Saubara.

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