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Clandestinidade, Trabalho Fabril e cotidiano no mundo fumageiro do Recôncavo da Bahia

Atualizado: 31 de mar.

Clandestinidade, Trabalho Fabril e cotidiano no mundo fumageiro do Recôncavo da Bahia

Produto utilizado para trocas por escravos com o continente africano até o século XIX, a transformação do fumo nas fábricas de charuto marca até hoje o cotidiano e as memórias das mulheres da região.

Por Geferson Santana, bolsista PIBEX do Cahl / UFRB

Orientador PIBEX: Leandro Antonio de Almeida


Publicado originalmente no LEHRB em 29/08/2013


Ainda quando criança, em Coqueiros distrito de Maragogipe, lembro que minha avó Antônia dos Santos Santana, negra, nascida em 1952, amanhecia fazendo charutos manualmente para os Mateós residentes em Nagé, pequeno distrito de Maragogipe. Creio que minha memória também seja comum à infância de muitas outras crianças do Recôncavo baiano onde, conforme expressa a historiadora Elizabete Rodrigues da Silva, as trabalhadoras clandestinas que trabalhavam em casa fora do espaço da fábrica comandava o processo de confecção do charuto, onde as crianças também estavam inseridas.

As fábricas de charutos não foram os únicos espaços usados para a sua confecção. O lar se tornou espaço alternativo em que as mulheres constituíram as principais personagens. Ele era uma extensão das fábricas para confecção coletiva dos charutos, onde todos os integrantes da família estavam envolvidos. Até mesmo as crianças se tornaram protagonistas no fabrico dos charutos à domicílio, não apenas envolvidas na produção mas participando de outros processos, como foi o meu caso, destalando a folha, fazendo grude, contando as unidades, organizando os produtos nas caixas e os carregando para o destino final.



Do plantio de fumo às fábricas de charuto

Ao contrário do século XX, entre os séculos XVII e XIX o fumo era usado na compra de escravos na África destinados, entre outras atividades, às plantations brasileiras. A década de 1780 começa com o crescimento na exportação de açúcar, fumo e couros e outros novos são acrescentados como café, algodão, arroz, cacau e trigo. Juntamente com o fumo eles enfrentaram momentos de crise e flutuações no nível de exportação aconteceram. Novas especiarias agrícolas são acrescentadas, entretanto, apenas o café e o algodão somado ao açúcar e ao fumo entraram na década de 1840 na escala dos quatro produtos responsáveis pela quase totalidade do comércio no mercado externo.


O fumo no Brasil, em especial na Bahia, conseguiu sobreviver as complicadas condições meteorológicas e competições do mercado internacional. Considerado no século XIX o segundo maior produto exportado da Bahia para o mercado internacional, ocupou a atenção dos grandes empresários da agricultura no período colonial, cuja relevância comercial era tão evidente que foi criada a Mesa de Inspeção para a vigilância do produto num único depósito. O rigor aplicado objetivava garantir o envio do fumo de qualidade para Portugal. O afrouxamento da inspeção veio com a abertura dos portos na primeira década de 1800 e a abolição da Mesa de Inspeção em 1828.


As mudanças culturais na Europa mudou o rumo do século XIX, num mercado competitivo em que o fumo gozava de grande estima no cenário europeu. Coube aos agricultores baianos, em especial do Recôncavo, pensar numa adaptação à nova realidade sociocultural. “O costume de mascar fumo, para o qual o fumo de corda produzido na Bahia se prestava bem, já saíra de moda, e agora as preferências estavam mudando novamente”, diz Bert Barickman, despertando nos produtores um novo olhar sobre o cultivo de outra espécie de fumo, em especial o fumo em folha comum na cultura cubana. A resistência a esta espécie criou uma temporada de crise, mesmo que os baianos já experimentassem a plantação do fumo em folha desde o século XVIII. A espécie em folha estava sem muita credibilidade pelo fato dos traficantes usarem o fumo de corda na compra de escravos vindos dos povos africanos.


A lei de proibição do tráfico negreiro de 1850, conhecida como lei Eusébio de Queirós, foi um verdadeiro decreto da crise econômica em um dos maiores plantéis de escravos, a Bahia, afetando também o fumo usado no comércio com a África. Mas, igualmente, novas perspectivas se abriram para a diversificação dos meios de produção e acumulação de capital no Brasil. Amílcar Baiardi, Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico põem em dúvida este caráter de crise da Bahia, a partir dos eventos dos anos 50 do Oitocentos que simboliza um verdadeiro surto industrial, onde agora os grandes empresários do tráfico negreiro se tornaram investidores no mundo industrial, nas fábricas de pano, rapé e cigarrilhas, charutos, açúcar refinado e outros.


Sendo assim, é correto pensar em crise na Bahia da segunda metade do século XIX?

A arte de fazer charuto é de conhecimento da Bahia desde 1829, todavia, as fábricas de charuto tal como entendemos hoje tem seus primórdios a partir de 1850. Não demoraria em surgir espaços fabris que seriam conhecidos no mundo, como Dannemann e Suerdieck que foram as mais prósperas.

As redes ferroviárias na Bahia promovem o nascimento de cidades, sua urbanização e progresso. Igualmente, as fábricas de charuto delimitam o florescimento do poderio econômico de cidades como Maragogipe que não fora contemplada com a ferrovia, mas foi elegida o maior parque charuteiro da América Latina. As ferrovias estiveram a serviço das fábricas de charutos transportando-os para os sertões e proximidades dos rios e mar navegáveis, rendendo grandes fortunas ao Recôncavo.


As instalações da fábrica Danneman dar-se em 1873 na cidade de São Félix pelo Gerhard Dannemann e que ocupou logo depois a primeira Intendência do referido município. O fabrico dos produtos começaram aproximadamente com 6 operários, se tornando uma das maiores empresas do país. Lygia Maria Alcântara Wanderley diz que esta fábrica “(…) foi desativada em 1948 e depois adquirida por um grupo suíço. Hoje, é a única remanescente de um áureo passado, contudo, sua prioridade é a exportação do fumo beneficiado para a Europa”.


A história da Suerdieck começa na Bahia em 1888, quando August Wilhelm Suerdieck, funcionário da F. H Ottens foi enviado para Cruz das Almas com a função de fiscalizar o enfardamento de fumos. Passado quatro anos, e “relacionado com a firma J.O.H. Achelis & Soehne, de Bremen, criou sua própria empresa em Cruz das Almas, como exportador e enfardador de fumo, dedicando-se também ao cultivo das matas de São Félix e Cruz das Almas (…)”, informa Lygia Maria Alcântara Wanderley. A qualidade do fumo Suerdieck permitiu que esta fábrica ficasse conhecida na Europa proporcionando grandes lucros. A vinda de Ferdinand Suerdieck para a Bahia, irmão de August, se tornaria possível em 1899 a instalação do primeiro armazém e em 1905 se constrói a primeira fábrica Suerdieck em Maragogipe.


A segunda metade do século XX é marcada por momento complexo, como o apogeu de muitas fábricas e armazéns como a Suerdieck com instalações nas cidades de Maragogipe, Cachoeira e Cruz das Almas, Dannemann em São Félix, Maragogipe e a C. Pimentel fundada em Muritiba. Entretanto, não duraria muito para acompanharmos a partir da década de 1990 o fechamento de algumas, inclusive a Suerdieck de Maragogipe que teve suas instalações transferidas para Cruz das Almas. A crise econômica que atinge a Bahia nesta segunda metade do século gerou a extinção de grandes empresas, muitas delas inclusive, fundadas no século XIX como a Dannemann, mas jovens empresas surgem com novas tecnologias e num cenário de precarização do trabalho. Os trabalhadores teriam que se inserir na nova realidade que se abria aos seus olhos, e com isso o número de mulheres que trabalham em seus domicílios aos poucos diminuiu.


O trabalho nas fábricas

Os relatos das mulheres majoritariamente negras que compunham a Irmandade da Boa Morte em Cachoeira e que constam nos cadernos de cultura do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) mostram um pouco da configuração social dos trabalhadores e trabalhadoras do fumo nas famosas terras da Bahia, e aqui no Recôncavo tivemos uma posição privilegiada no fornecimento da maior porcentagem de fumos de variedades diversas para o mercado interno e externo. Para muitas das irmãs da Boa Morte as fábricas e armazéns eram as oportunidades de emprego para ajudar no sustento da família. Dona Antônia do Espírito Santo, negra, ex-moradora da Casa dos Velhos de Cachoeira, falecida em 2011 com 94 anos, nascida em 18 de fevereiro de 1917, começou suas atividades na Suerdieck de Cachoeira em 1937, e quando a fábrica de Cachoeira virou armazém, foi para a Suerdieck de Maragogipe em 1964, se aposentando em 1970. Esta é uma dos trabalhadores singulares do Recôncavo que sustentaram o “império fumageiro”.

Segundo os relatos e outras fontes, a mulher que desejasse ser tabaqueira tinha algumas alternativas de atuação, a primeira era nos armazéns selecionando o fumo, a segunda era na fábrica de charutos e cigarrilhas, e a terceira era trabalhar de forma “autônoma” ou “clandestina” no lar. Os homens eram destinados para o enfardamento e seleção do fumo, confecção de caixas e embalagens dos charutos. As mulheres constituíram em peças fundamentais na fabricação de charuto e tarefas nos armazéns, isso considerando que para os donos de fábricas e armazéns elas são importantes devido à delicadeza, paciência e docilidade.

Considerar as vantagens das mulheres na seleção e destalação dos produtos, assim como na confecção do charuto era parte da estratégia para atrair as mulheres. Os homens foram aos poucos sendo minoria nesses espaços, em especial no armazém, e a ala feminina ocupou aos poucos seu espaço no mercado de trabalho. A perda de espaço acabou gerando a “guerra dos sexos”, onde o público masculino gradativamente foi perdendo oportunidades de emprego para as mulheres. Estas ganhavam menos que os homens e tinham uma intensa jornada de trabalho. As mulheres que trabalhavam em casa tinham uma jornada de trabalho muito maior que as da fábrica.


Mas o mundo das fábricas e armazéns delimita um espaço dominado pelo sexo masculino. Os homens são geralmente os patrões, gerentes, mestres, contramestres e trabalhadores responsáveis pelo enfardamento do fumo e outros. As mulheres geralmente vindas das zonais rurais e urbanas representam um perfil majoritário representado por mulheres negras, pobres, semianalfabetas ou sem instrução, solteiras e com idade compreendida entre 15 e 55 anos de idade. Por outro lado, temos as mulheres que são mães, dona de casa, esposa, etc., e que tinham suas funções a cumprir na fábrica por um salário baixo para garantir a subsistência da família. Essas mulheres viviam num ambiente marcado pela disciplina, opressão, embora quando questionada sobre o convívio na Suerdieck em Cacheira, a qual começou a trabalhar em 1937, Dona Antônia do Espírito Santo responde que era “Tudo bem, tudo com amor, respeito (…)”.


Dona Antônia dos Santos Santana relata que trabalhava o dia inteiro, sendo os intervalos os momentos em que tinha que parar para arrumar a casa, fazer comida, dar banho no filho caçula, nos dois netos que criava, comer, contudo tinha dias que trabalhava pouco e finais de semana que não trabalhava. Nessa atividade considerada como autônoma, as charuteiras prestavam conta ao fumo que os empregadores as entregaram para a confecção do produto, estabelecendo o número de charutos que deveriam ser entregues num prazo determinado. Creio que existiram outras formas de experiências, onde os prazos não eram estabelecidos, mas esclarece Elizabete Rodrigues da Silva e Margarete Nunes Santos Gomes que algumas mulheres trabalhavam em casa fabricando charutos, e sem ter o compromisso de prestarem conta a alguém, simplesmente eram donas do comércio que funcionava no domicílio.


Os fabricos eram espaços muito parecidos com o que as mulheres autônomas faziam em seus domicílios com a diferença de que naqueles uma mulher coordenava as atividades do espaço composto geralmente de 15 a 30 mulheres. A Vila de Cabeças (hoje Governador Mangabeira) era composta de muitos fabricos ligados geralmente a mulheres da mesma família, mas também trabalhavam as que não eram do seio familiar. Esses espaços de produção coletiva dava à vila um aroma familiar do fumo que se espalhava por todos os espaços criando um cotidiano intimamente ligado ao “saber fazer” charutos consumidos não apenas pela população local. Podemos dizer que os fabricos e suas trabalhadoras eram extensões das fábricas. Isso pode ser percebido nas fichas cadastrais de algumas empresas que as registravam como “Charuteira Domicílio”.


As condições desumanas as quais estavam inseridas com risco de acidentes oriundos da combustão do fumo ou de pegar uma doença, incentivam as reivindicações dos trabalhadores e trabalhadoras e por consequência a fundação dos sindicatos que reclamavam seus direitos apelando para os direitos trabalhistas. Em um relato de uma trabalhadora do fumo em São Gonçalo dos Campos trazido por Rosana Falcão Lessa, podemos encontrar que o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Fumageira foi uma conquista dos trabalhadores e passo inicial para a conquista da carteira assinada. Foi comum o desconto das taxas que deveriam ser pagas ao sindicato e ao Instituto Nacional de Previdência Nacional (INPS).


O século XXI tem como peso guardar a memória de trabalhadores de um século deixado para trás, mas que continuam na vida e cotidiano das pessoas por meio das memórias, monumentos, documentos como os cadastros dos operários presentes em arquivos das próprias fábricas como a Dannemann em São Félix, ou em centros de ensino superior como a Faculdade Maria Milza (FAMAM) de Cruz das Almas. Essas histórias sobre as fábricas e seus cotidianos nos ajudam a entender a nossa realidade e cotidiano, na medida em que muitas cidades ganharam as dimensões que têm hoje às atividades fumageiras. Poderíamos dizer que nossa vida está entrelaçada com as histórias de homens e mulheres que trabalharam nas fábricas que trouxeram prosperidade aos lugares onde nascemos.




Imagem 1 – Fábrica de charuto Suerdieck & Cia em Maragogipe. Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=581707501845873&set=a.581705675179389.152270.252555121427781&type=3&theater.

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