Leandro Antonio de Almeida
Publicado originalmente em Carta na Escola, São Paulo, , v. 82, p. 30 - 33, 01 dez. 2013
As recentes revelações de espionagem envolvendo os Estados Unidos pautaram inúmeros Memes sobre vigilância na internet. Por exemplo, em uma fotomontagem ficcional, um garotinho interpela Obama: “Meu pai disse que você espiona a nossa vida”. “Ele não é o seu pai!”, responde o presidente, aludindo à informação sobre relações extraconjugais da mãe do garoto, obtida de maneira privilegiada. Essa é a forma bem humorada de lidar com exposição do cotidiano a um poder invisível capaz de usar o que sabe contra os cidadãos, no mínimo para favorecer interesses de Estado ou corporativos, intimamente ligados no capitalismo dos Estados Unidos.
A montagem do sistema de vigilância global coincide com a construção da hegemonia deste país a partir da segunda metade do século XX. Até os anos 1940, a política de isolamento frente às potências europeias, bem como as intervenções restritas à América do Norte e Central, não levaram ao desenvolvimento de um aparato de espionagem externo pelos Estados Unidos. Além do ministério da Defesa, a principal agência de inteligência era o FBI, que se voltava para assuntos internos como a vigilância de grupos fascistas, socialistas e anarquistas. O contexto da II Guerra Mundial levou à criação de uma agência em 1941, a OSS, dissolvida após o conflito.
No mundo pós-1945, a rivalidade das duas superpotências emergentes, Estados Unidos e União Soviética, criou uma polarização conhecida como Guerra Fria. Militarmente, a disputa por hegemonia se manifestou numa corrida armamentista que atemorizou gerações quando se fabricou artefatos nucleares capazes de destruir várias vezes o planeta. Geopoliticamente, as superpotências estenderam zonas de influência por várias nações. Não por acaso o maior símbolo da época foi o Muro de Berlim, construído em 1961 para separar a capital da Alemanha, sede de dois países criados em 1947 com regimes distintos, o capitalismo a oeste e o socialismo a leste. Todavia, o padrão de atuação dos Estados Unidos e União Soviética não foi o embate direto mas a espionagem e o suporte a grupos simpatizantes, dentro ou fora de sua área de influência. Por isso, no xadrez geopolítico da Guerra Fria, o papel dos serviços de inteligência foi considerado crucial.
Nesse contexto foram criadas as agências citadas no artigo de Carta Capital, a CIA (Central Inteligence Agency) e a NSA (National Security Agency). A CIA surgiu em 1947 como uma agência civil independente. Destinava-se a coletar e analisar informações sobre grupos e países estrangeiros. Quando os dados eram sigilosos, utilizava espionagem humana e/ou tecnológica, chegando a mandar construir aviões para fotografar bases soviéticas. A agência também realizava operações clandestinas no exterior para desestabilizar os países-alvo: plantavam notícias falsas na imprensa, incitavam manifestações, treinavam de tropas simpáticas, capturavam e torturavam pessoas, e promoviam intervenções armadas.
Na América Latina, a primeira dessas operações ocorreu na Guatemala em 1953-4, quando a CIA organizou, com exilados guatemaltecos, um golpe de estado para depor o presidente eleito Arbenz. Sob a alegação de expansão do comunismo soviético, o alvo foi a nacionalização de terras improdutivas pertencentes à multinacional United Fruit Company, na qual tinham negócios o diretor da CIA e o Secretário de Estado americano, os irmãos Dulles. Poucas vezes a imbricação dos interesses geopolíticos e corporativos foi tão explícita como nesse episódio, pois as atividades da agência visava justamente salvaguardar esses interesses, como ficou claro no seu apoio aos golpes militares da América do Sul e outras ações pelo mundo.
Já a NSA foi criada em 1952, vinculada ao Departamento de Defesa. Porém servia os outros serviços de inteligência porque atuava na espionagem e contraespionagem eletrônica envolvendo criptografia, não só de inimigos mas também de aliados dos Estados Unidos. Durante a Guerra Fria, centrava-se tanto na escuta de conversações seguras entre diplomatas, políticos e militares, bem como na quebra de códigos e interceptação de dados enviados por satélites espiões, testes de armas inimigos ou outros mecanismos de rastreamento. Tinha o maior orçamento e também era a mais secreta das agências, ao ponto de o governo americano ter negado por anos a sua existência.
A NSA tornou-se a agência que lidera a UKUSA, um pacto de troca de informações sigilosas firmado em 1943 entre os Estados Unidos e o Império Britânico. Três anos depois foi atualizado para integrar Austrália, Nova Zelândia e Canadá, motivo pelo qual esse acordo ficou conhecido como “Os Cinco Olhos”. Com o desenvolvimento tecnológico, a partir dos anos 1970 a UKUSA passou a contar com o projeto Echelon, uma rede de vigilância global baseada em satélites, estações terrestres, postos de escutas e outros recursos situados em territórios, navios e embaixadas. Através dessa rede podia-se interceptar e analisar qualquer comunicação eletrônica no mundo, via cabo ou wireless, feita a partir de telefones fixos, rádio e micro-ondas.
O final da Guerra Fria reorientou o trabalho dessas agências, pois o principal inimigo deixara de existir e os Estados Unidos se tornaram a única superpotência militar. Como a retórica que a mantinha perdeu sentido, as atividades de inteligência foram desviadas e justificadas, sobretudo após 11 de setembro de 2001, para os grupos e Estados considerados terroristas. Muitos haviam sido financiados pela CIA para atender os interesses geopolíticos americanos, a exemplo dos Talibãs no Afeganistão ou de Saddam Hussein no Iraque, cujas guerras envolveram o interesse das petrolíferas no Oriente Médio.
Todavia, com a perda do poderio econômico dos Estados Unidos, a CIA e NSA também espionaram empresas estrangeiras e repassaram informações privilegiadas obtidas pelo Echelon às corporações americanas. O estudioso Moniz Bandeira menciona, entre outros casos, o pedido feito à CIA pelo presidente Bill Clinton para que fossem espionados fabricantes japoneses que projetavam automóveis com zero emissão de gás. Ao repassar a informação para a Ford, Chrysler e General Motors, Clinton parece ter atualizado uma famosa frase proferida em 1946 pelo presidente desta última empresa, quando era candidato ao Senado: “o que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos, e vice-versa”.
A frase continua verdadeira e expressiva do capitalismo norte americano se considerarmos a imbricação entre o governo, as agências de inteligência e as gigantes da informática que surgiram com a expansão da comunicação por computador, principalmente a internet. Os documentos divulgados pelo ex-funcionário da NSA Edward Snowden mostram a existência de uma versão atualizada da rede Echelon para um contexto digital. Como explica Stéphane Bortzmeyer, citado em artigo da Agência Carta Maior, o sistema Prisma é capaz de acessar informações em servidores das redes sociais do Google, Facebook e outras, segundo os ativistas da informática com a conivência das empresas. Outro sistema, o Boundless Informant, volta-se aos metadados de telefonia e informática, bem como à medição da segurança digital de um país. Já o X-Keyscorey é um mecanismo de busca da NSA capaz de recuperar informações de qualquer pessoa na rede. Como bem lembra o artigo de Antonio Costa, o programa americano é apenas a versão mais potente daqueles utilizados por outros países, como a França.
Assim, é preciso lidar com algumas heranças da Guerra Fria: o poderio dos Estados Unidos presente, além do aparato militar, na espionagem das agências de inteligência; sua influência comprometedora sobre as megacorporações e sobre os governos aliados; e, principalmente, a infraestrutura e o controle de fluxos de informação centralizados em seu território. O momento atual é crucial para definição de legislação, infraestrutura alternativa e políticas democráticas para a comunicação digital, que assegurem os objetivos e direitos dos usuários comuns, por vezes conflitantes com o dos governos e das grandes corporações. Se estamos longe da utopia prometida na internet, tampouco precisamos viver o pesadelo de um Big Brother digital.
Saiba Mais:
BANDEIRA, Luiz Alberto Viana Moniz. A formação do império americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
KARNAL, Leandro et alii. História dos Estados Unidos. São Paulo: Contexto, 2007
VOLKMAN, Ernest. A História da Espionagem: o mundo clandestino da vigilância, espionagem e inteligência, desde os tempos antigos até o mundo pós 11/9. São Paulo: Livros Escala, 2013.
Guia de Atividades Didáticas.
1) Peça para os estudantes assistirem (ou exiba em sala) um filme ou série de TV produzido por Hollywood que tenha como tema os agentes da CIA ou da NSA. A partir da análise das imagens e dos elementos da narrativa (personagens, ambiente, enredo etc), veja se os valores nacionalistas estão presentes ou se há uma perspectiva crítica. Se houver tempo, compare filmes do período da Guerra Fria com aqueles produzidos nos anos 1990 sobre o tema.
2) Um trabalho conjunto com o professor de inglês, ou tradução pelo professor de História, pode levar os alunos a analisar os documentos históricos liberados pela CIA, disponíveis no site http://www.foia.cia.gov/. O mecanismo de busca na parte superior retorna alguns registros on-line para leitura ou download. Sugerimos a busca por temas mencionados no artigo acima ou sobre o Brasil entre 1947 e 1990. A partir deles pode-se ter acesso ao trabalho realizado pelas agências de inteligência, o tipo de relatório, os destinatários, a análise conjuntural sob a perspectiva dos interesses dos Estados Unidos.
Por exemplo no link abaixo temos o Boletim da CIA de 19 de março de 1964. Nele há informações sobre o Brasil. http://www.foia.cia.gov/sites/default/files/document_conversions/5829/CIA-RDP79T00975A007600010001-6.pdf
Manifestações no Capitólio para protestar contra espionagem da NSA. Washington, 26 de outubro de 2013. (AP Photo/J. Scott Applewhite)J. Scott Applewhite. Disponível em: https://www.nbcnews.com/feature/edward-snowden-interview/nsa-officials-snowden-emailed-question-not-concern-n118011
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