Leandro Antonio de Almeida
Publicado originalmente em Carta Fundamental, São Paulo, p. 46 - 47, 01 ago. 2013
Quando se iniciaram os protestos em São Paulo contra o aumento da tarifa de ônibus, uma das imagens mais difundidas nas redes sociais foi a foto de um rapaz branco segurando um cartaz com os dizeres “Saímos do Facebook”. A imagem dos jovens protestando por direitos desmontava o estereótipo de uma geração alienada, plugada na internet e redes sociais digitais. À medida que os protestos tiveram diversas adesões e apoios, ampliando sua pauta para questionar as práticas políticas e reivindicar direitos, outro estereótipo também foi desmontado: o de que o brasileiro é um povo pacífico e passivo.
Ao buscar definir os traços típicos de um povo, vários pensadores ao longo da história do Brasil atribuíram, junto da mestiçagem, essa característica de passividade ao brasileiro. Desde o século XIX que alguns intelectuais atribuem um sinal negativo a esse traço, como Sílvio Romero, que atribuía a passividade ao clima, à natureza e à mistura de raças. Por outro lado, algumas explicações se tornaram notáveis pela exaltação positiva desta característica, como é o caso, em 1900, de Afonso Celso no livro para crianças “Porque me ufano de meu país”, ou de explicações com pretensões sociológicas como a tese da democracia racial de Gilberto Freyre ou a da bondade natural do brasileiro, defendida por Cassiano Ricardo.
A vertente patriótica costuma ser apropriada pelos grupos dirigentes do Estado, principalmente em momentos de seu fortalecimento democrático ou ditatorial. O reforço da identidade nacional, com a difusão e exaltação da ideia de um povo brasileiro único (apesar das diferenças) e sobretudo pacífico, visa legitimar o Estado, suas instituições e leis como expressão da nação, como atualmente é possível entrever no slogan oficial “Brasil, um país de todos”. O objetivo é minimizar a percepção das desigualdades, hierarquias e tensões sociais internas do país, bem como desqualificar grupos opositores ou justificar a ação repressora contra a própria população, sobretudo a mais pobre, quando em protesto. Nesses momentos tensos, o estereótipo de passividade do brasileiro e do Estado como expressão do povo são colocados em xeque.
Podemos notar esse traço autoritário dos políticos e agentes do Estado em um protesto por direitos lembrado nas manifestações de junho de 2013, a Revolta do Vintém. Em fins dos anos 1870, o vintém correspondia ao valor de vinte réis, e era a moeda de menor valor no país. Na tentativa de sanear uma crise financeira, o ministro da fazenda do gabinete liberal recém empossado por D. Pedro II, Afonso Celso, propôs aumentar impostos, entre os quais a tarifa dos bondes da capital Rio de Janeiro. Chegou-se a sugerir que as companhias arcassem com o débito e pagassem por estimativa de passageiros mas, após debates no parlamento, em 13 de dezembro de 1879 o ministro anunciou que a tarifa reajustada em vinte réis entraria em vigor no dia 1º de janeiro de 1880. Alegando a legalidade do processo, estabeleceu que os usuários pagariam a conta.
A medida anunciada mostrou-se impopular, gerando protestos na imprensa e entre políticos da oposição, com destaque para os republicanos, como o médico e jornalista Lopes Trovão. Na tarde de 28 de dezembro, após um inflamado discurso, ele esteve à frente de um cortejo de cinco mil pessoas rumo à residência imperial para entregar uma petição pela revogação da tarifa. Protegido pela polícia, D. Pedro II se recusou a receber a comitiva mas, quando mudou de ideia, a multidão já se retirava, e os líderes se recusaram a entregar o documento, visando enfraquecer politicamente o governante. Na manifestação nenhum conflito ocorreu, porém uma força policial atacou os remanescentes que se dispersavam.
Se esse episódio violento não ganhou destaque, o que aconteceu dias depois não passou em branco. Em outro inflamado comício, Lopes Trovão sugeriu boicote à tarifa que entrava em vigor, mas a população revoltada passou a percorrer as ruas do centro do Rio esfaqueando os animais de tração, espancando os condutores dos veículos, virando os bondes, quebrando os trilhos e com eles retiravam pedras das calçadas, arremessando-as contra a polícia por trás das barricadas feitas com os destroços. O principal conflito ocorreu na rua Uruguaiana, quando o exército e a infantaria se juntaram à polícia contra os manifestantes, gerando saldo de três mortos e cerca de vinte feridos. Outras manifestações de menor vulto ocorreram na cidade até o dia 4 de janeiro, mesmo com o patrulhamento intenso do centro do Rio de Janeiro pela polícia que, além disso, prendeu aqueles que considerou responsáveis por incitar os protestos e proibiu por doze dias a circulação do jornal republicano Gazeta da Noite.
A repercussão da revolta do vintém foi negativa, pois muitos dos envolvidos apontaram os excessos da polícia e outros tantos pediram a revogação da tarifa pelas páginas dos jornais. A insistência do ministro em manter a taxa levou à queda do gabinete em março de 1880 e à revogação do tributo em setembro pelo gabinete liberal renovado. Como aponta os historiadores Sandra Grahan e Ronaldo Jesus, esta revolta foi um marco no Segundo Reinado, não só projetando importantes nomes na cena política como levando os parlamentares a cada vez mais considerarem a população das ruas como atores no jogo do poder, como ficaria evidente em outras causas marcantes na década como a Abolição e o movimento republicano.
Porém, nesse particular, a República instaurada em 1889 não diferiu do regime anterior. Para lembrar um exemplo notável, em 1904 a lei da vacina obrigatória, que colocou a polícia à frente dos médicos, levou a população do Rio de Janeiro a se revoltar e ser novamente reprimida. Longe de ser um fato ocasional ou um excesso, a truculência policial e do exército contra a população indignada nas manifestações e greves é um padrão recorrente na história do país, qualquer que seja o governo a que servem. Isso torna atual uma denúncia feita na passeata contra o vintém: “reivindicar o povo os seus direitos é um crime entre nós, porque os beleguins de polícia estão habituados a espaldeirar o povo, e a vê-lo fugir diante dos sabres dos seus sequazes”. Se atualizássemos as palavras e as armas, o trecho vale para os protestos iniciados em junho de 2013, o capítulo mais recente das manifestações populares explosivas no Brasil.
Saiba Mais:
Chauí, Marilena. Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000
Grahan, Sandra L. O motim do Vintém e a cultura política do Rio de Janeiro – 1880. Revista Brasileira de História, v. 10, n. 20, mar. ago. 1991
Jesus, Ronaldo P. A Revolta do Vintém e a Crise da Monarquia. História Social, n. 12, 2006
Charge de Ângelo Agostini sobre a Revolta do Vintém. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, Ano 5, n. 191, 1880, p. 4
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